Foi nos anos 1970, mais precisamente no dia 18 de outubro, que o escritor Ariano Suassuna fundou o Movimento Armorial. Era início da noite, quando um grupo de artistas se reuniu no pátio da igreja de São Pedro dos Clérigos, no centro de Recife, capital de Pernambuco, para apresentar um projeto rico e ousado: fazer arte erudita a partir de elementos da cultura popular.
Eles tinham como principal objetivo criar uma arte autêntica brasileira baseada em suas raízes. Fazer o Brasil encarar-se de frente. Coisa que Ariano já fazia há mais de uma década. Foi no interior da Paraíba, onde cresceu e viveu, que Ariano escreveu “O Auto da Compadecida”, uma adaptação de três folhetos de cordéis para a dramaturgia, que acabou chegando ao cinema e à TV em forma de minissérie.
Apesar de ter sido elaborado 15 anos antes do lançamento do Movimento, o livro acabou virando uma obra capaz de sintetizar a cultura armorial.
Nos passos do fundador, vieram outros artistas como o artista plástico Francisco Brennand, o gravador e desenhista Gilvan Samico; e o músico e dançarino Antônio Nóbrega. E apesar do Armorial ter se espalhado pelas artes em geral – literatura, dança, teatro, arquitetura – uma área não foi contemplada: a gastronomia. Talvez porque, naquele momento, o país não estivesse pronto para encarar sua culinária como um alicerce cultural dos mais importantes de um povo. Afinal, depois da língua, nada nos une mais do que o que comemos.
Nascimento da Cozinha Armorial
Foi quando entrou em cena o chef paraibano Onildo Rocha. “Me incomodava os títulos que davam para a minha cozinha: fusion, franco-nordestina, contemporânea… E, na verdade, achava que não se encaixava em nada disso”, explica. “O que eu fazia era usar a metodologia da gastronomia francesa para os transformar os ingredientes que eu tinha por perto.”
E um dia, após ler o “Romance d’A Pedra do Reino”, que o chef teve uma luz: sua gastronomia era Armorial. “Comecei a estudar e achei uma similaridade incrível com o que eu fazia, que era enaltecer os ingredientes e cultura popular. Fui atrás da família Suassuna e tive a autorização para usar o termo para descrever meu trabalho”, diz o chef.
Tasso Marcelo | Estadão
Escritor Ariano Suassuna, criador do Movimento Armorial, em 2007, no Rio de Janeiro
Em 2017, Onildo apresentou o conceito de Cozinha Armorial durante o congresso internacional “Mesa Tendências”, em São Paulo. Ao seu lado, a escritora Ana Rita Dantas Suassuna, prima de Ariano e autora do “Gastronomia Sertaneja: Receitas que contam histórias”.
Nesse dia foi fincada, definitivamente, a espada do Movimento na gastronomia brasileira. Hoje, chefiando o Notiê e Abaru, no topo do Shopping Ligth, no centro de São Paulo, Onildo apresenta em seus menus vários exemplos de ingredientes extremamente populares transformados em alta gastronomia. É o caso da releitura do cuscuz com cabrito, comida facilmente achada nas feiras paraibanas.
No menu Sertões, o chef fez a sua versão do prato: cabrito cozido em baixa temperatura, glaceado com roti, mini cenouras coloridas na brasa sobre passata de tomates, servido com cuscuz em cuscuzeira feita pelas artesãs de Itabaiana, na Paraíba.
Pelo Brasil afora
Apesar de ter nascido sob o solo sertanejo, o Movimento Armorial não se restringe a limites territoriais. É possível encontrar chefs que caminham nessa mesma direção em diversas partes do país.
“O Ariano queria que o Brasil fosse armorial. Que todas as regiões entendessem e extraíssem da terra, da memória de seu povo o que há de mais valioso, e tornasse essa cultura global”, afirma Onildo.
No Sul, em Curitiba, Paraná, Manu Buffara é um exemplo de que o Armorial está em movimento. “Conheci esse termo pelo Onildo. Acredito que é meu trabalho é pegar esses ingredientes que estão no dia a dia, nos mercados e feiras, e extrair deles o que há de melhor”, diz.
Eleita a melhor chef mulher da América Latina pelo Latin America’s 50 Best Restaurants 2022, entre outros títulos, Manu é dona de uma cozinha marcada pelo protagonismo vegetal. Comanda, desde 2011, o Manu, que serve apenas menu degustação preparado com ingredientes sazonais e frescos.
“Quando viajo levo comigo não só os produtos e ingredientes que tenho aqui, mas também todo o nosso conhecimento, a filosofia e a nossa maneira de cozinhar”, diz Manu.
E, talvez seja isso a essência do Movimento Armorial: usar o mel da abelha-mirim nativa, vindo do sítio do seu Benê, em Mandirituba, no interior do Paraná, deve ter o mesmo valor tanto para o cliente do Manu quanto para um comensal do outro lado do mundo. Porque a arte não tem limites. Uma das criações mais emblemáticas de Buffara – a cenoura na brasa com rub de especiarias, salsa de fermento e farinha de mandioca fermentada – conversa (e encanta) pessoas em diversas línguas.
“O nosso maior desafio é pensar fora da caixinha e fazer com que um produto regional e popular seja entendido em qualquer lugar”, diz a chef, que hoje também dá expediente no restaurante Fresh in the Garden, nas Ilhas Maldivas e, em breve, abre o Ella, em Nova York.
Apesar de ter nascido em Santa Catarina, o chef Felipe Schaedler virou uma referência quando o assunto é comida amazônica. Aos 15 anos, viu sua vida mudar ao trocar sua cidade natal, Maravilha, por Itacoatiara, no Amazonas.
Apaixonou-se pelos rios, pela floresta e pelo mundo encantado que existe sob as copas das imensas árvores que guardam a história do Brasil originário. Fundou o Banzeiro. Primeiro em Manaus. Depois, seguiu para capital paulista.
Na selva de pedra, apresentou os ingredientes da terra onde cresceu de um jeito diferente. Transformou os insumos e modos de fazer ribeirinho e indígena em fine dining. Na cozinha de Felipe, o tucupi, sumo extraído da raiz da mandioca brava, muito usado na região Norte, ganha a companhia do nam pla (molho de peixe tailandês) e katsuobushi (peixe seco japonês).
“Aí temos uma explosão de umami, o que é muito legal”, diz. O tucupi é usado em receitas tradicionais, como o tacacá, preparo indígena, servido com goma de mandioca, jambu e camarão seco. Outro exemplo é a espuma de mandioquinha guarnecida com formiga-saúva. “Sempre causa um alvoroço entre a clientela, que fica curiosa com esse insumo”, diz o chef.
Ariano, mesmo sem saber que um dia suas palavras chegariam também na cozinha, ficaria orgulhoso. Aposto. Hoje, além de levar o artesanato às grandes galerias, o cordel aos telões de cinema, a música popular aos grandes teatros, o Movimento Armorial levou também a comida do povo para alguns dos melhores restaurantes do país – e do mundo. O Brasil finalmente pode provar o Brasil.
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