Apocalipse

No carro da Clarisse não tem puta-que-pariu. Ela me disse que passou a ser um item opcional. Um absurdo. Toda vez que eu entro no carro, procuro o diabo da alça. Me dava segurança. Estabilidade, sabe? Para quem não sabe, o puta-que-pariu, também conhecido como puta-merda, é um pequeno puxador que vinha instalado na lateral do carro, quase no teto. No caso de uma freada, derrapada, batida ou inopinado cagaço, aciona-se o puta-que-pariu, pega-se na alça com toda a força e reza-se para todos os santos.

Sim, é verdade: o cinto é que previne acidentes. Mas o puta-que-pariu previne piripaques de várias categorias. Sim, é verdade: freios abs, air bag e outros que tais são responsáveis pela vida do motorista. Contudo, há de se dar valor ao puta-que-pariu. É ele o responsável pela paz de espírito, pelo equilíbrio emocional, pela tranquilidade no trânsito. Imaginem o que é enfrentar um engarrafamento sem balançar o braço na alça de plástico. Portanto, é de pasmar que um item essencial para segurança emocional tenha se tornado opcional.

Além do mais, no tempo em que podíamos andar de vidro aberto, sem fumaça e sem malabaristas nos semáforos, eu segurava no puta-que-pariu e abria a asa. Era um alívio para o sovaco. O cotovelo funcionava como um quebra-vento que, aliás, também acabou. O fluxo de ar desviava-se pelo cotovelo, seguia pelo braço, ombros e descia para o tronco todo. Hoje em dia, temos ar condicionado. Ninguém se pergunta o que acontecerá no caso de cecê. Cinco pessoas aboletadas num engarrafamento com aquela nhaca debaixo do braço. Tranca-se o carro e joga-se a chave fora? Onde está aquele ventilador natural que era o puta-que-pariu? Ficamos eternamente submetidos à parte elétrica. Se pifar, a vida acaba.

E a embreagem? Demora para coordenar um pé com outro, vamos e venhamos. Pior do que tocar harpa. Alguém já viu como os harpistas queimam os dedos? Era a mesma coisa. Pé esquerdo na embreagem, pé direito no acelerador. E o freio? O freio, dizia o instrutor, é acionado retirando-se o pé do acelerador. E o pé esquerdo, caralho? Esse só se usa ao passar a marcha. Muita informação, com licença. Anos depois da primeira vez em que afoguei o motor do carro, lançaram o câmbio automático.

A minha expertise entrou pelo cano. Anos de treino, anos de tratativas entre o pé esquerdo que levantava e o pé direito que abaixava, além da mão que encaixava o câmbio na marcha correta. E a chave? Até chave acabou! Basta se aproximar do carro e ele se abre que nem porta de shopping. E o pino? Como vou saber se a porta se abriu ou se fechou? São modernidades que desafiam a lógica mais primária. Mas eu resisto. Tento resistir. Me recuso a olhar na câmera quando vou estacionar.

Sou mais eu, ora! Vou mirando o retrovisor até alinhar o carro, torço e contorço, vou calculando distâncias entre uma lataria e outra na base do olhômetro. Bons tempos de baliza! Vou me adaptando como posso. Na falta do puta-que-pariu, enfio a mão para fora, abro a asa e refresco o meu sovaco. Gente, é sério. Isso aqui é muito sério.

Os tempos estão tão mudados que vão acabar com o porta-luvas. O porta-luvas! Onde vou guardar o rolo de papel higiênico? Onde vamos esquecer os óculos escuros? Onde a gente enfia o manual do carro? Eu vivi no tempo em que o porta-luvas vinha com fechadura. Juro por Deus, palavra de escoteiro. Adianta esse conhecimento, essa ciência morta? Não adianta! Vai mudar tudo. Já mudou, aliás. O acendedor de cigarro, o cinzeirinho, a seta do limpador de para-brisa, o esguicho de água no vidro, a manivela da janela. É o pós-moderno, me disse um amigo. Não querido, respondo convicto, sem o puta-que-pariu é o apocalipse…

Eduardo Mahon é escritor

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