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Opinião Sexta-feira, 23 de Agosto de 2024, 09:06 - A | A

Sexta-feira, 23 de Agosto de 2024, 09h:06 - A | A

JOÃO ELOY

O inesquecível amigo Dagnel

João Eloy

A vida é bela, sempre nos premia com amigos leais, verdadeiros irmãos, às vezes até mais ligados a nós do que irmãos de sangue.

Tento, nesta crônica, homenagear aquele que foi em várias ocasiões, o ombro amigo, o colega sem igual, o irmão e camarada.

Nesse momento em que, em pensamentos, visito o meu passado rico de aventuras e separo as melhores sementes para cultivar no solo fértil da minha alma, não poderia jamais deixar de lembrar do meu colega, “irmão” e amigo de todas as horas, Dr. Dagnel Corrêa da Costa.

Se ainda fosse vivo (faleceu há quatro anos atrás, prematuramente aos 62 anos de idade, vítima de um infarto do miocárdio fulminante), concordaria comigo em gênero, número e grau, que todas as nossas parcerias foram belas, ricas e produtivas: juntos trabalhamos vários anos em nossas Clínicas Santa Maria, em Chapada dos Guimarães e no bairro do Coxipó em Cuiabá; aparamos mais de duas mil crianças, varando madrugadas em plantões e também juntos fizemos muitas serestas sob o luar intenso da região do nosso pantanal mato-grossense onde, em caravanas, costumávamos viajar para pescarias festivas e joviais, como poeira de estrelas, cheias de promessas.

Nós dois tínhamos como “hobby”, a música, e ele me convidava para nela nos encontrarmos nessas pescarias, seu outro “hobby”.

Dagnel foi o cara que mais confiou em mim, juntamente com sua esposa Eliney, que nunca deixou a desejar.

Chegamos a construir um Hospital em sociedade, a Clínica e Maternidade Santa Maria, no bairro Residencial Coxipó em Cuiabá.

Vários foram os episódios marcantes que vivemos juntos, mas um em particular se destaca: aconteceu quando partimos, já de tardezinha, para uma pescaria. Ele e eu em seu jipe Toyota com tração nas quatro rodas, rebocando sua lancha espaçosa e possante. Os outros componentes da comitiva, mais atrás com dois veículos, juntamente com a equipe de cozinheiros e apreciadores desses encontros tão agradáveis, inclusive pescadores profissionais.

Dagnel comentava, entusiasmado:
_ João, daqui a uma hora já estaremos navegando no espelho d’água do rio Paraguai.

De fato isso aconteceu e lá chegando, de repente o sol se pôs. Anoiteceu. O Pantanal, à nossa frente, era apenas uma lâmina negra, refletindo os astros. O calor era de matar, os insetos começavam a chegar. Cada um se protegia a seu modo: uns abanando o chapéu, outros cobrindo a cabeça e pescoço com toalhas, outros acendiam cigarros, cuja fumaça afastava os temidos pernilongos

Todas essas medidas, na maioria das vezes, eram inócuas, pois os insetos estavam ávidos por nosso sangue. Com os seus ferrões, transpunham até mesmo o grosso tecido de nossas roupas em tecido “jeans”.

Eis então que Dagnel desligou o barco, acendeu uma lanterna, colocou em minhas mãos e disse que mergulharia nas águas escuras e geladas. Todos ficamos muito aflitos, nos três a quatro minutos seguintes, quando ele submergiu, recebendo inúmeras reclamações e xingamentos de todos nós, seus companheiros de jornada:
_ Você está louco, rapaz? Quase nos mata de susto! Sem você aqui, estaríamos sem pai nem mãe!

Sucede que o nosso querido amigo era um pescador profissional, frequentador assíduo daquelas paragens e conhecia aquelas curvas do rio como a palma da sua mão.

Assim, ele ingeriu um generoso gole de cachaça, reconhecendo todo o risco que correu, pois poderia enfrentar várias condições perigosas, como chocar-se com uma tora à flor d’água ou mesmo ser atacado por piranhas, onças ou jacarés. Pior ainda: ser abraçado e devorado por uma enorme sucuri.

Tremendo de frio, calmamente ele olhou para o céu e disse:
_ Olhem, pessoal! Está chegando um temporal por aí. Mas vou ligar o motor do barco e, seguindo rio abaixo, aportaremos numa bela praia, onde acamparemos.
E lá chegando, uma agradável surpresa nos aguardava: em toda a extensão da areia, observamos muitas capivaras com seus filhotes, que mergulharam imediatamente, ao ouvirem o barulho do barco.

Foi uma cena linda, com a luz prateada do luar refletindo em seus pelos lisos e molhados. Como que gentilmente, os enormes roedores nos cederam aquele amplo espaço para acamparmos.

Eu e Dagnel armamos as barracas; Sílvio, Américo e Orlando foram cuidar da comida, construindo um enorme tacuru, enquanto Roosevelt se encarregava da lenha para o fogo.

O delicioso aroma da linguiça e da carne seca fritando na gordura, preparando a deliciosa “maria-zabé”, logo invadiu nossas narinas, provocando roncos em nossos estômagos famintos. Enquanto esperávamos, enganamos a fome com doses generosas da cachaça Oncinha, para abrir mais ainda o apetite.

O ruído dos bugios e o esturrar das onças não nos amedrontavam, pois nosso colega Dagnel estava bem armado e uma enorme fogueira que havíamos acendido, arderia a noite inteira, nos protegendo de indesejáveis ataques desses animais e também de muriçocas, abelhas, marimbondos, mutucas e “lambe-olhos”.

Naquela noite venturosa, após o delicioso jantar, sentados na areia, demos início a uma bela cantoria; eu no cavaquinho e Dagnel ao violão, formávamos uma boa dupla. Vez ou outra o amigo Sílvio, também bom cantador, soltava sua voz possante. Íamos madrugada a dentro, nos braços do luar e de nossas recordações.
Até que uma chuva torrencial nos obrigou a nos recolhermos nas barracas. As águas vieram com força e pela manhã, despertamos com os pés molhados, em consequência do temporal.

Ao amanhecer ganhamos a companhia, novamente, das capivaras, tuiuiús e quero-queros.

E, enquanto nos deliciávamos com o cheiro do café fresquinho, observávamos os aguapés que boiavam ali perto, onde caminhavam com leveza sobre as folhas tenras, inúmeros cafezinhos, bicando as flores dos camalotes.

Vinha às nossas mentes uma pergunta:
_ Por acaso, só por acaso, seria ali o paraíso, edificado com a paciência das águas que, incessantemente, lavavam os pés dos astros?

Após um farto quebra-torto composto de “maria-zabé” que sobrara da janta, ovo e pão, cada um se apossou de suas tralhas de pesca e rumamos para o barco, se entregando a esse tão delicioso esporte, que é a pesca no pantanal mato-grossense, cujos rios piscosos nos convidam a esse deleite.

Devo ao amigo Dr. Dagnel Corrêa da Costa, essas doces lembranças de limites, aventura e superação, que povoam meus pensamentos até hoje.

Tenho certeza que, como “bom-vivant” que sempre foi, ele conquistou o próprio sossego para sua alma.

João Eloy é chapadense, médico, professor, escritor, compositor, músico, apresentador do Programa Varanda Pantaneira e articulista do Alô Chapada.

 

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