Josué, era menino da nossa idade, irmão do Bira, filhos de Manezim Padeiro; cujos pães, a gente comia de madrugadinha, quentes, quando íamos pra quadra da Escola, para as atividades da Educação Física. Josué fazia carrinhos com o flandres das latas de óleo, que eram uma perfeição: Veraneio, C-10, Corcel, Jipe. Outros eram exímios na feitura de Pião, Papagaio, Bilboquê, Barco etc., com os talos de buriti, galhos de sarã e troncos de goiabeira. Todos, cada um a seu modo, fazíamos os nossos brinquedos, jogávamos bola, futebol e estudávamos sob o olhar rigorosíssimos dos nossos pais e mães, porque não bastava ir à Escola: tínhamos que demonstrar, que estávamos aprendendo!
Naquele então, a Escola não era lugar para, apenas, ou sobretudo, acolher meninos e meninas. Era ambiente para desenvolver o conhecimento, com seu tempo próprio para o ensino, onde se construía a disciplina do estudo, sob os modos sisudos dos professores e professoras; de forma que, a cada bimestre e, especialmente, no final do ano, tínhamos que prestar contas de tudo. O Boletim, escrito à mão, sem nenhuma nota vermelha, era a prova de que tínhamos sido estudiosos, que éramos inteligentes, dedicados – e as pessoas sabiam desse desempenho, e comentavam, elogiando. Não me lembro de algum de nós, da Quinta Série em diante, que não soubesse ler e escrever bem, porque ninguém passava para o Ginásio sem saber ler, escrever e fazer, no mínimo, as Quatro Operações, com a Tabuada na “ponta da língua” ...
Das nossas Professoras do Primário, nenhuma tinha curso superior; mas, alfabetizavam a todos: Dona Rita, Dona Nery, Dona Valdeniza, Professor Raimundo de Pano. Do Ginásio: Zé Gomes, Francisco Kleishmith, Hugo Alovisi, Lourdes e outros que lembro a fisionomia, mas o nome, não...
Havia naquele ambiente interiorano, uma atmosfera favorável ao ensino e à aprendizagem, de forma que os três sujeitos fundamentais do processo educacional-escolar – Professor, Estudante e os Pais/Mães – sabiam dos seus papéis e os cumpriam rigorosamente, com responsabilidade intransferível; pois, assim, cuidavam da própria imagem pública, exigida tácita e, às vezes, explicitamente, pelo ambiente social. O primeiro, expressava a autoridade de quem sabia e ensinava com rigor e eficiência, de maneira que sua capacidade era reconhecida e comentada; o segundo, com a obrigação da disciplina para estudar e aprender, sem descuidar do respeito, se desdobrava em esforços; o terceiro, com a responsabilidade de acompanhar tudo e corrigir o segundo de alguma falta, irresponsabilidade ou desrespeito, inclusive com a ameaça da temida palmatória, para se orgulhar do resultado...
Até fins dos anos de 1980, vigia em Mato Grosso essa ambiência favorável à educação escolar. Quem não se lembra da Televisão, do Rádio e dos Jornais impressos, divulgando o resultado do Vestibular da UFMT? No dia do anúncio do resultado, Cuiabá, Várzea Grande e as cidades todas onde houvesse vestibulando, cobriam-se de expectativa, formando uma atmosfera de suspiros apreensivos, à vista de uma vaga em algum dos cursos oferecidos pela UFMT; quando a UFMT, sob certos aspectos, dizia-nos um velho Companheiro, era “maior que Mato Grosso”. Nome por nome, os aprovados eram anunciados para todo mundo ver e ouvir; era um acontecimento, com a TV mostrando estudantes aflitos, buscando seus nomes nas listas dos aprovados, fixadas nos murais da Universidade. Alegria e decepção. Choro de mãe, de pai, festa de famílias...
A entrada de um filho na Universidade era motivo de orgulho: afirmava a “boa criação”, o nome da família. A sociedade reverenciava os universitários, reconhecia o esforço, a responsabilidade e a dedicação aos estudos, culminados com a aprovação no Vestibular – porque não era fácil. O universitário se sentia diferençado socialmente, e gostava de se apresentar como universitário, porque sabia que a sociedade sabia que trilhava um futuro novo, diferente e superior aos demais. Na maioria das vezes, superior ao dos pais. Era como se a sociedade, ao reconhecer o sucesso do indivíduo no processo educacional-escolar, se reconhecesse vitoriosa nessa conquista: era um cidadão a se formar, e não um arrivista – como se afigura hoje...
Com o avanço da economia, dos negócios privados se interiorizando em todos os cantos da vida social, segundo as necessidade e interesses do Capitalismo Periférico, dependente, uma espécie de arrivismo coletivo, um individualismo estéril para a coletividade, foi-se entranhando em grande parte das massas trabalhadoras; de modo que os prepostos e funcionários graduados dos donos dos negócios que se espraiavam nos sertões e corrutelas, foram elevados ao status de modelo do ser social necessário. Então, aqueles sertões e sua gente, impactados por uma urbanização individualista, sem tempo para o outro, viram suas paisagens sociais, naturais e as relações de solidariedade serem esgarçadas; desfazerem-se os sentimentos de pertencimento a seus tempos e lugares de construções e perspectivas comuns, para se agarrarem na fragilidade e insegurança do eu-sozinho, contra todos – ao gosto do que se convencionou chamar de neoliberalismo...
Então, a vida foi se enclausurando em silentes consigos, de pessoas sozinhas em minúsculos apartamentos e casas; de um jeito que, apesar de mais gente ter alcançado determinado conforto material, o mais da Vida restou, de algum modo, menos alegre – inclusive para essa classe média; porque a alegria de riso aberto, carece do outro para se manifestar feliz...
O sucesso do indivíduo se desconectou da perspectiva de sucesso da sociedade, de maneira que, o reconhecimento e a admiração social de outrora, transigiram do modo de ser, para o ter das pessoas, independentemente da forma como o conquistaram. Abriu-se, assim, grandes perspectivas para o crime organizado e reconfiguraram-se as políticas de negação da educação viabilizadora do conhecimento para as massas trabalhadoras. Daí elaboraram e difundiram por todos os meios, para ganhar as mentes dos pais, jovens, crianças e mães, o discurso de que, melhor que o ensino e a formação demorados da Escola Básica, era o treinamento rápido, prático e sem as exigências do rigor do estudo – especialmente porque, imediatamente, lhes garantiria a tão necessária empregabilidade.
Depois, pelas moderníssimas tecnologias e equipamentos individuais de comunicação, emerge como a referência do indivíduo de sucesso, até para as crianças impúberes, essa figura deletéria que se convencionou denominar influencer – cuja “formação”, fazem questão de dizer (para alívio dos professores), não careceu de Escola, nem de estudo: bastou-lhes, mandar às favas os escrúpulos...
O indivíduo é presa fácil para o controle e a sujeição capitalista; as massas trabalhadoras conscientes e organizadas, não. Com a certeza histórica disso, é que a Esquerda organizou e educou as massas ao longo do Século XX; conquistando direitos que, agora, são tratados até por assalariados, arrivistas e ignorantes, como empecilho para o desenvolvimento social. Para atender as necessidades e interesses do capital, o processo produtivo foi revestido de relações cada vez mais sofisticadas e desumanas, de forma a convencer os assalariados a abrir mão de antigos direitos, inclusive exigindo-lhes mais tempo para o trabalho e menos pra si, para casa, pros filhos, para a vida; e grande parte das massas, achou isso normal e necessário – afinal, o assalariamento é a normalização da escravidão do nosso tempo...
Então, perdida aquela atmosfera social favorável à Educação, a Escola e seus processos rigorosos de ensino e aprendizagens foram sendo caracterizados como demorados e “teóricos” demais, inúteis à vida prática e urgente de hoje, incapazes de formar a “mão de obra” e, assim, desnecessários às massas trabalhadoras em face de suas urgências para sobreviver. De tal modo isso, que a maioria dos pais, mães e responsáveis pelos alunos da Educação Básica, foi se despreocupando com a escolaridade de seus filhos e filhas, não lhes cobrando mais o cumprimento das tarefas, desinteressando-se dos boletins e notas – de forma que nem perceberam, os meninos e meninas terminando o Ensino Médio sem saber ler e escrever proficientemente. Assim, passaram a ver os professores e professoras apenas como “servidor público”, “cuidadores” de meninos e meninas, de maneira que a Escola, de ambiente do conhecimento, tornou-se apenas o lugar relativamente seguro para abriga-los, enquanto os pais e mães se esfolam no trabalho.
Eis a infância se esvaindo em inutilidades, sugada pelas telas, cujo celular caro, destaca, distingue mais que o desempenho escolar. Ou seja, os donos dos negócios e do poder, que nunca quiseram perder o monopólio do conhecimento para as massas trabalhadoras, estão matando de tristeza, solidão e ignorância, a infância...
Fazem décadas que não vejo a maioria dos colegas da Educação Primária e do Ginásio. Às vezes, tenho notícias de um ou de outro. Alguns ficaram bem de vida, a maioria vive do trabalho duro e salário minguado. Uns viraram prefeito, vereador, empresário, lavrador. Do Obede, filho de Seo Arquimedes e Dona Nair, soube que morreu, mês passado, depois de viver paraplégico por uns 50 anos; dos três mais novos da Dona Maclina e do Seo Gonçalo, só o Toinha vive, aposentado na Polícia. Do Afonso nunca mais soube, nem do Josué. Das meninas, quase todas viraram Mães de Família, com filhos e netos – algumas com curso superior. A Vida parece curta, mas não é...
A Escola Básica parecia uma eternidade. Mas, décadas depois de tê-la cumprido, por seus Anos Letivos, e ido além, revela-se a menor parte da jornada. O processo de ignorantização da sociedade, não; por suas políticas de negação do conhecimento às massas trabalhadoras, estende-se camaleônico ao longo das décadas: perverso, intransigente, efetivando-se eficazmente – e, assim, atendendo ao interesse do Capitalismo Dependente, com seu desenvolvimento limitado, parecendo ser pleno. Mas, o mais importante e promissor, é que nós, trabalhadores, somos e estamos na base de tudo; o desafio, é fazer a maioria saber disso!
Professor Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor da rede pública de ensino
O Alô Chapada não se responsabiliza pelas opiniões emitidas neste espaço, que é de livre manifestação
Entre no grupo do Alô Chapada no WhatsApp e receba notícias em tempo real
Raimunda,souza 24/09/2024
Verdade verdadeira ,nossas crianças não sabem o que e um Símbolo Nacional. Hino Brasileiro, da Bandeira ou do Soldador Nem mesmo quem descobriu o Brasil, dia da Árvore, ou o que significa 7 de setembro São roborres despido de conhecimentos, de Fé , Esperança ou desejos de Progresso.Vejo a Educação hoje como retrocesso , construindo uma massa Manipulavel e Falida , diante das telas....
Sebastião 22/09/2024
Então, se não mudar o rumo ou seja a direção dos que governam realmente favorece a isso, na educação depois da educação para todos, qualidade total, etc. Agora a tal de meritocracia comparando educação como empresa aí realmente podemos ir a falência e não vai demorar muito tempo.
Domenico laurito 21/09/2024
Certíssimo, sem falar na desvalorização dos profissionais da educação que são desafiados quase que a diário por alunos e pais de alunos , o que acaba refletindo na sociedade.
Hélio Lima 21/09/2024
Há expressões agressivas, ofensas e/ou denúncias sem provas. Queira, por gentileza, refazer o seu comentário.
4 comentários