Recentemente, a atual presidente da Academia Mato-grossense de Letras concedeu uma entrevista na qual comenta o uso do gênero neutro. Sinto-me feliz ao ver a pauta da discussão ganhando as manchetes. A “linguagem neutra” é usada como trampolim político, forma de tensionamento de grupos que se radicalizaram, o que não é nenhuma novidade. Usar ou não usar? Em tempos intelectualmente pobres, a discussão limita-se ao maniqueísmo de viés semirreligioso. Felizmente, a escritora Luciene Carvalho conseguiu abrir um panorama mais amplo, sem condenar ou prescrever. Trata-se de perceber no fenômeno da língua e suas representações de poder.
O que se fala no Brasil não é o português de Portugal. Da mesma forma se dá em Moçambique, Angola, Cabo Verde. O “padrão” é apenas uma fotografia de um momento histórico e também muda com o passar do tempo. Até o centro da fala se desloca no espaço. É natural que as pequenas nuances se aprofundem com o desejo político de emancipação, de diferenciação, de ressignificação identitária. De repente, surge uma nova língua. Pode acontecer reversão de movimento. Não é raro colonizações reversas, ao considerarmos o impacto das redes sociais, o tamanho do mercado editorial, as telenovelas brasileiras etc.
E o “todes”? Pega ou não pega? Como qualquer outra língua, é preciso tempo para observar seus movimentos. Não adianta espernear a favor ou contra. Se houver adesão popular, não há gramático que segure a onda. Está evidente que o uso do “todes” indica a explicitação do jogo de representações sociais que, no mais das vezes, está oculto em milhares de outros usos. A novidade é que, no conflito, duas bandeiras foram defraudadas, uma conservadora e outra, progressista. Importante destacar que, neste caso, “conservador” não é crítica, assim como “progressista” não é elogio. São duas posturas com relação à língua: a primeira ligada à normatividade, estabilidade e didática; a segunda à representatividade e inovação. As duas bandeiras disputam o campo, cada qual almejando a colina de maior visibilidade.
Trocando em miúdos, a língua é território contestado. Não há escritura e, portanto, não há proprietário. Invasões são frequentes. Não existe polícia que desaloje inovações quando são incorporadas na fluência popular. Língua é poder, é tribo, é condição. O fenômeno é tão complexo quanto o próprio ser humano. É certo que algumas pessoas (sobretudo as que dominam a norma culta) pretendem dela se assenhorar, exercendo pequenas censuras, típicas da etiqueta social e, ao procederem assim, reforçam o status letrado. Essa é uma das muitas formas de conservar a gramática e não deixa de ser legítimo que haja um esforço nesse sentido. Faço isso diariamente com meus filhos e não tenho razão alguma de me envergonhar.
O que acho digno de nota não é propriamente o uso do gênero neutro, mas a razão do incômodo. Na defesa e na repulsa linguística, evidenciam-se questões sociais e, por que não dizer?, sexuais. O contemporâneo é desafiador porque balança uma antiga estrutura binária com fluidez e incerteza, deixando muita gente insegura.
Se o “todes” será usado ou não, o futuro dirá. Francamente, não me parece viável porque o uso do gênero neutro é, por enquanto, episódico e impopular. O que é possível afirmar, neste momento, é que a língua está protagonizando um debate político explícito, fato que me parece histórico. Vamos aproveitar o momento para entender que o ser humano não cabe em uma única gramática.
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