A organização social das mulheres da África antes da colonização europeia é a inspiração do mulherismo africana. Esse conceito político é resultante das pesquisas da americana Clenora Hudson-Weems, feitas na década de 80, e passou circular com mais força no Brasil nos últimos tempos. Katiúscia Ribeiro, professora de filosofia e coordenadora do Laboratório de Africologia e Estudos Ameríndios Geru Maã da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que essa experiência pode guiar o protagonismo feminino nos dias de hoje.
“O mulherismo africana tem uma luta de raça, de restabelecer a emancipação da população negra”, explica Katiúscia, nessa entrevista à coluna.
Ela descarta qualquer semelhança entre mulherismo e feminismo. A base é a atuação das mulheres no continente africano, onde estavam à frente de seu povo, como centros vitais. A partir daí, o objetivo é claro. “Pesquisar o lugar participativo das mulheres africanas na história, identificando nelas o lugar de poder, de sabedoria, de ensinamento e de luta”, define.
Katiúscia também fala da política institucional e de como as propostas dos partidos políticos são insuficientes para tratar das questões raciais.
“Acredito em uma frase muito emblemática da Sueli Carneiro, que diz: ‘entre a esquerda e a direita as pessoas pretas sempre estão em um lugar de subalternização'”, critica.
O que é o mulherismo
Mulherismo africana é uma proposta política cunhada no final da década de 80, pela professora afroamericana Clenora Hudson, que faz uma investigação epistemológica de como as mulheres africanas se organizavam antes do período colonial. Como eram as experiências culturais e históricas dessas mulheres antes dos atravessamentos e das nomenclaturas e antes das perspectivas construídas pós colonização.
Nessa investigação, a doutora Clenora se depara com uma experiência que antes não tinha sido investigada que era como essas mulheres se organizavam dentro do continente africano. Ela diz que não inventou nada, apenas foi até essas mulheres e começou a entender como se organizavam e como estavam à frente de seu povo, a partir de uma perspectiva matrilinear, onde as mulheres eram centros vitais, centros organizacionais.
As mulheres eram as que organizavam toda a estrutura de seu povo. A partir dessa noção, ela estabelece o termo mulherismo africana, que trata de uma proposta emancipadora, de pesquisar o lugar participativo das mulheres africanas na história, identificando nessas mulheres o lugar de poder, de sabedoria, de ensinamento e de luta.
E como encontrou nesse lugar de luta essas mulheres que sempre agenciaram as potências, que eram matriarcas e geradoras de potência de suas comunidades.
Mulherismo e feminismo
Não têm qualquer similaridade, não têm qualquer proximidade, porque eles partem de perspectivas de epicentro de localizações completamente distintos.
O feminismo é uma luta cunhada a partir de um movimento ancorado pelas sufragistas, um movimento pós-colonização, em que as mulheres brancas se organizam para pensar medidas para suas emancipações e depois as mulheres negras passam a disputar um lugar nesse protagonismo enquanto mulheres.
O mulherismo africana tem uma perspectiva que pensa a partir de sua própria agência, sua própria localização, seu próprio epicentro. Entendendo que nada que não foi embrionariamente pensado pelas mulheres negras pode dar conta delas em sua totalidade.
Por exemplo, o feminismo negro tem uma luta de gênero. O mulherismo africana tem uma luta de raça. De restabelecer toda uma emancipação da população negra a partir da perspectiva racial, uma vez que a violência sobre os corpos das mulheres e homens negros é uma realidade.
Essa é uma particularidade do mulherismo africana, entender que os homens negros também fazem parte desse processo de violência construído pelo racismo. Então os homens também fazem parte desse debate, fazem parte dessa reconstrução de sua identidade subtraída pelo processo colonial.
Contribuição do mulherismo à política
Pode trazer uma política de reconhecimento de como o Brasil é estruturalmente um país racista, é alicerçado pelas bases do racismo. O mulherismo africana convida as pessoas a reconhecer o seu processo histórico e a sua história violentada pelo processo colonial, traz à tona o reconhecimento da potência das populações negras.
Política partidária
Não sou filiada a nenhum partido, sou apartidária, não tenho nenhuma bandeira polítco-partidária. Porque eu acredito em uma frase muito emblemática da Sueli Carneiro: “Entre a esquerda e a direita as pessoas pretas sempre estão em um lugar de subalternização”.
O cenário político brasileiro ativa um pouco mais isso, porque sequer pensa qualquer proposta ou apresenta qualquer medida de resolução das questões raciais.
Eu tenho esse posicionamento porque o Estado brasileiro nunca se comprometeu de fato com a eliminação das questões raciais. Acredito que a população negra tem que ter uma tomada de consciência de forma muito mais ampla de como elas são acometidas diretamente pelo racismo.
No entanto, não dá para deixar de reconhecer que nos governos progressistas teve um determinado avanço em alguns setores das lutas raciais desse país.
Mulherismo e esquerda
Quanto ao mulherismo a esquerda não tem como fazer absolutamente nada porque é uma proposta política de emancipação que não dialoga com esses setores.
Primeiro precisa revisitar que a esquerda também promove um protagonismo de si mesma. A esquerda precisa se comprometer de fato com as pautas raciais. Dentro dos movimentos de esquerda também tem racismo, a esquerda está ancorada em suas próprias realidades políticas. As pautas raciais precisam ser centro.
Recentemente, eu entrevistei o professor Tulio Custódio (sociólogo) e ele trouxe uma frase muito lúcida. Diz que não há como se pensar qualquer ação nesse país em que as populações negras e as questões raciais não sejam centro.
A esquerda precisa ter esse comprometimento, não usar isso como bandeira política, mas entender que isso de fato precisa ser uma ação política.
Filosofia
A gente tem um governo que uma de suas primeiras ações foi retirar a filosofia dos curriculos escolares. Isso demonstra a serviço do que esse governo está.
A filosofia é a possibilidade de construir um processo intelectual abstrato que nos ajuda a existir no mundo das ideias, que nos ajuda na busca de resultado desses processos intelectuais, de entender como a vida funciona, de fazer análises críticas.
Eu acredito que o cenário atual precisa urgentemente de análises críticas. As análises que têm sido feitas são curtas, que não possibilitam um debate, um avanço, nem mesmo perceber como está o cenário atual.
Esse governo que está em colapso, esse governo que é de violência, com mais de 450 mil mortes, e a filosofia tem ferramentas que nos ajudam a fazer análises críticas, colocar um crivo crítico sobre a realidade política atual.
Coincidentemente, é o primeiro item a ser retirado pelo governo, a primeira ação é o não investimento na filosofia nos currículos das escolas
Contribuição da filosofia africana
As filosofias africanas trabalham com a ideia do que hoje se chama de bem viver. Se olhamos a filosofia ubuntu, que tem uma responsabilidade comunitária, que entende que todos os sujeitos existentes dessa comunidade estão conectados entre si, o que isso quer dizer? Existe uma responsabilidade individual que se pressupõe coletiva.
Então você tem a possibilidade de uma sociedade que trabalha dentro de uma visão social, que entende por exemplo que todos os indivíduos precisam de respeito. Que todos precisam estar em pé de igualdade. Essa mesma noção filosófica você vai encontrar nas correntes de pensamento que foram construídas às margens do Rio Nilo, que são as filosofias do Egito Antigo.
*Katiúscia Ribeiro é professora de Filosofia
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