Ao longo dos séculos, consolidado o capitalismo como sistema produtivo hegemônico no mundo, a violência do interesse capitalista se difundiu e foi assimilada como necessidade da sociedade em geral, que a tomou como imprescindível para a sua preservação e desenvolvimento. Autotélico, o interesse superior do capital é a sua valorização, que se efetiva, em última instância, mediante a produção de mercadoria; que é realizada pelo trabalhador assalariado, que se submete ao assalariamento porque a sua força de trabalho é a única mercadoria de que dispõe para vender, em troca da sobrevivência. No mundo moderno, o trabalho assalariado ou “trabalho livre” substituiu o trabalho escravo, não por uma questão ético-moral ou desprezo do empresariado à Escravidão, mas por uma questão de custo, isto é, da possibilidade de maior lucro que o empresário tem com o trabalhador assalariado, que com o escravo...
Sim, o Escravizado precisava ser mantido vivo com comida, moradia, vestimenta e algum medicamento, pelo Senhor Escravocrata, para que pudesse trabalhar e gerar riqueza; o Assalariado, não: ele que se vire para se manter vivo e em condições de se oferecer para trabalhar para o empresário, em troca do salário, da sobrevivência...
O desenvolvimento das sociedades capitalistas é dirigido pelo empresariado a partir da empresa privada, com todo o apoio do Estado: de recursos financeiros, ao amparo institucional em geral, intransigente, do Executivo, do Judiciário e do Legislativo. Assim, os donos do grande capital (que não podem ser confundidos com os micros, médios e pequenos empreendedores, donos dos micros, pequenos e médios negócios, que empregam a maioria dos assalariados etc.) impõem-se, convencendo a sociedade em geral, especialmente a classe trabalhadora, de que os seus interesses e necessidades são os interesses e necessidades de todos; desta forma, diante da presença e protagonismos empresariais, as presenças e as realizações dos demais sujeitos sociais no processo produtivo da sociedade, especialmente dos trabalhadores, são rebaixadas, afiguradas por um caráter secundário – embora sejam eles, os que produzem tudo...
Então, a fala, o discurso empresarial, fez-se a expressão da verdade desinteressada, isto é, produzida e proferida para o interesse de todos, de toda a sociedade: tornou-se lei aprovada nos Parlamentos, para todos cumprirem – regulando, por conseguinte, o modo de ser e desenvolver de toda a sociedade. Decorre então, o entendimento geral de que o desenvolvimento realizado pela empresa privada, sob a direção férrea do empresário, é para o bem-estar, o desenvolvimento geral, de toda a sociedade, a partir do que cada indivíduo particular sonha; quando a finalidade inegociável da empresa privada é a valorização do capital, de forma que o emprego da mão de obra é só a condição sine qua non para essa valorização. Daí que qualquer contestação crítica a isto, é tomada como a expressão de interesses egoísticos, individualistas, “comunistas”, contrários à coletividade; de maneira que os críticos dessa concepção de mundo e desenvolvimento, tornam-se passíveis de desprezo, de condenações legais, podendo ser silenciados e banidos...
Mas, o poder não se evidencia, por seus interesses e procedimentos, como o sol numa manhã de abril; de modo que as mãos que seguram e o açoitam o relho, torturando, ferindo corpo e alma, quase sempre são as de prepostos, a mando – assim, as mãos dos que mandam bater, seguem como se limpas, sem sangue e culpa. Daí que, consumado “o serviço sujo”, os donos do poder estendem olhares de compaixão e lágrimas e gestos caridosos de ocasião para os subjugados feridos, voluntariando-se para lhes aliviar as dores e fechar as feridas que ainda sagram abertas; e, às vezes, eles mesmos se apresentam tão compadecidos em face do ferido e subjugado, que este agradece o favor, e penhora-se em sentimentos eternos de gratidão. Dá pena ver essa gente assim...
Somente quando se liquefazem nas entranhas e mentes das massas, assimilados como a fonte capaz de lhes dar a água pra matar a sede que eles mesmos, os poderosos, lhes impuseram – é que os poderosos se fazem os donos do poder. Então, os assalariados se apartam de micros e pequenos empreendedores e, estes, daqueles, para seguirem a referência anuladora e egoística do grande capital; aí, essa boa gente perdida de si e transformada em instrumento para o trabalho, só se acha no que lhe nega ser para si – é quando pedem para libertar o homicida Barrabás, e crucificar o caridoso e inocente Nazareno. Eis que no avesso do que se vê da vida, é que se esconde a importância de tudo; é ali que o revés e o seu revés se formam: silente, perverso ou caridoso, festivo, pranteado, mortífero, vivificador...
A vida é muito bonita, dizia Dasdô; mas, é difícil, e ainda mais é, quando não se tem a Mãe pra dizer o que é...
Veja o fato de que em 1990, a sociedade mato-grossense e, mais que todos, os trabalhadores da Educação, tinham demonstrações sobejantes do compromisso e dedicação de diversos militantes e dirigentes sindicais, que se lançaram candidatos – dos quais, João Monlevade e Marília Salomoni. Dirigentes nas lutas dos Educadores, com a clareza de um projeto societário democrático e progressista em mente e em seus modos de ser e viver, para elevar as condições de vida e trabalho dos trabalhadores e pequenos empreendedores, expuseram-se ao escrutínio das massas trabalhadoras mato-grossenses daquele tempo, com vistas à Assembleia e à Câmara Federal, respectivamente. Eram tempos em que se elegia o governador, sabendo quem seria o seu sucessor dali a quatro anos; assim, em 1990, Jaime Campos era a “pedra da vez”, aliás, Pedra 90, como ficou conhecido: era o que estava marcado para substituir Carlos Bezerra e Edison de Freitas...
Nós da Educação, escaldados nas lutas e conscientes do que a falta de deputados e outros mandatários comprometidos com nossas reivindicações nos impunha, sonhávamos com a eleição de representantes saídos da luta para nos representar na Assembleia e na Câmara Federal. Além do João e da Marília, tínhamos a Serys, que, por uma trajetória diferente desses dois, reunia mais condições eleitorais, e, assim, era apoiada por parte da direção do movimento sindical dos Educadores. Vinculados umbilicalmente à luta sindical e, por isto, vistos como muito “radicais”, João e Marília precisavam receber uma votação expressiva da categoria e dos demais Servidores Públicos para se elegerem; os que apoiavam Serys, viam-na com mais possibilidades...
A menos de duas semanas para as eleições, o João chegou no sindicato e, entre preocupado e irritado, disse para os que estavam ali: “– Se não nos mexermos, não vamos eleger ninguém: precisamos ir conversar com o pessoal no interior, pedir votos!” No dia seguinte, ele e eu saímos em peregrinação pelos municípios da região do Araguaia: de Primavera do Leste até Santa Terezinha, no extremo-nordeste do estado; e, por incrível que pareça, constatamos que não eram poucos os trabalhadores da Educação que não sabiam daquelas três candidaturas. Nos lugares em que passávamos, fazíamos reuniões, discutindo a Educação, a sociedade, as condições de vida e trabalho dos Trabalhadores em geral e as perspectivas que se abririam com a eleição dos três “candidatos da Educação”, etc. Lembro que em um daqueles municípios, encontramos com um velho político das antigas, que nos disse meio enciumado:
– Esse tipo de campanha de vocês é que ganha voto de qualidade...”. Aprendi depois, que quantidade e qualidade não se separam: a quantidade de votos que elege, tem mais qualidade que todos os votos das pessoas mais especiais do mundo que, todavia, não foram suficientes para eleger o candidato...
Aquela foi uma das muitas e longas viagens que João e eu fizemos, Mato Grosso a dentro; sempre com carro e combustíveis dele, viajamos dezenas de milhares de quilômetros pelas estradas de chão e de asfalto esburacado, fazendo o Movimento Sindical: realizando assembleias, reuniões formativas, seminários, encontros de formação e, algumas vezes, em campanha eleitoral. No carro íamos nós e, não raro, uma carga de mercadorias que o João recolhia de pequenos produtores de Acorizal e municípios do derredor de Cuiabá que, vendidas por onde passávamos, pagavam parte das despesas; o carro saía de “pneus baixos” com banana, farinha de mandioca, abóbora, mandioca. Os carros do João nunca tinham rádio, nem qualquer aparelho de som; dizia-me: “– Rádio, toca-fita, em carro, só atrapalha a gente conversar...”.
Assim, em todos aqueles percursos íamos conversando sobre os mais diversos assuntos: problemas e questões econômico-sociais do país e de Mato Grosso, literatura, filosofia, história e organização da Classe Trabalhadora, a situação e os desafios da Educação Pública no Brasil e aqui, as contribuições da Igreja Católica para a nossa formação, especialmente dele, que quase foi padre, etc. Fazíamos os seminários e os encontros de formação com os Trabalhadores da Educação em muitos e diversos municípios, ao tempo em que, entre nós, nas distâncias entre um e outro município, desviando dos buracos e de gado nas estradas, realizávamos verdadeiras conferências: tempo bom, de grandes e importantes aprendizagens...
João tinha um problema: era muito muquirana – aliás, continua! Quando a coisa pendia para o lado do dinheiro, ele não gastava com nada além do estritamente imprescindível, de modo a fazer até o estômago padecer sob aquele rigor franciscano. Ele era capaz de almoçar parte de um pacote de bolacha água e sal, acompanhado de um daqueles sacos de leite de um litro; especialmente quando a viagem era longa e as distâncias entre uma e outra cidade não nos permitiam chegar na hora do almoço ou da janta na casa de algum Companheiro ou Companheira. Vivíamos ainda os sopros voluntariosos e mudancistas do fim da Ditadura Militar, e a reconstrução de nossas esperanças e do País, numa perspectiva democrático-popular; cujos instrumentos políticos para essa construção, tínhamos no Partido e no Movimento Sindical, de orientação Cutista. Nenhuma dessas organizações tinha um veículo para aquelas viagens, de maneira que, ou íamos com o carro de algum Companheiro ou Companheira (João, Eulina e Marília), ou íamos de ônibus – nunca se ouviu um único comentário de alguém se aproveitando de algum recurso ou dinheiro, ao contrário: o que se ouvia era esposas dizendo que o companheiro estava tirando de casa para dar ao sindicato, ao partido...
Uma dessas viagens, fizemos com um carro do Companheiro Vicente Ávila. Lembro que saímos de Cuiabá no meio da tarde, depois de uma longa reunião com o Governo do Estado, para um seminário em São Félix do Araguaia: Clóvis, Eloá e eu. O seminário começaria às oito horas do dia seguinte, portanto tínhamos que viajar a noite inteira pra atrasar o início do seminário; mas, pouco antes das seis horas da manhã, entre Nova Xavantina e Água Boa, o carro saiu da estrada e capotamos. Acordei amparado por dois passageiros do ônibus da Xavante que passava e, vendo o acidente, socorreram-nos; vi Clóvis já deitado no asfalto em estado de choque, com os pés dilacerados, a Eloá com muitas dores, mas sem ferimentos mais sérios. Levaram-nos para dentro do ônibus, onde ficamos deitados no corredor e, assim, levados até um hospital de Xavantina, que não contava, sequer, com Raio X...
Quando a notícia chegou em Cuiabá, dando conta de que nossa situação não nos permitia voltar de carro, o Governo do Estado, com o empenho solidário do secretário Valter Albano, mandou um avião com a companheira Wilma para nos buscar. Com Clovis e eu sem podermos caminhar e a Eloá cheia de dores, foi o Professor Tarzan, de Nova Xavantina, que, fazendo jus ao apelido, levou-nos da cama do hospital até o carro que nos transportou ao aeroporto. Foi a viagem de carro mais longa e dolorida que já fiz: o trecho do hospital ao aeroporto era cheio de quebra-molas, em cada um que o carro passava, apesar de todo o cuidado do motorista, era gemido de dor terrível. Acomodaram-nos no avião e partimos para Cuiabá, que não tinha teto para o pouso, nem Rondonópolis tinha condições para o pouso: tivemos que volta para Nova Xavantina, onde passamos uma longa e dolorosa noite. No outro dia, ao meio dia, chegamos em Cuiabá e fomos levados para o Hospital Geral, onde tivemos todos os cuidados, inclusive com as cirurgias que o Clóvis teve que fazer para recuperar os pés. O carro do Ávila deu perda total, o Sindicato ressarciu, parcialmente, o prejuízo...
Mas, daquela viagem com o João ao Araguaia, antes desse acidente, portanto, lembro como éramos bem recebidos nos municípios todos, o que certamente rendeu votos importantes para os três candidatos; João dizia que sem aquela viagem, talvez tivesse faltado votos para a Serys se eleger. Abertas as urnas, Jaime (PFL) teve 66,85% dos votos, Bonilha (PMDB) 13,85%, Scaloppe (PT) 12,62%, Luiz Soares (PSDB) 5,44% e, Malfada (PSD) 1,24%. Nem João, nem Marília se elegeram, nem tiveram votos para serem suplentes. De todos os eleitos, excetuando Serys, nenhum tinha um histórico de lutas ou de vínculos e dedicação às nossas lutas, movimentos e organizações. De modo geral, os Trabalhadores votaram contra si, elegendo quem nunca os representara. João e Marília não se elegeram: os Trabalhadores perderam!
Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino.
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