Foi em janeiro de 1981, que vim morar em Cuiabá. Vim estudar. Naquele tempo eram poucos os municípios que ofereciam o Segundo Grau; então, para estudar além do primário era necessário se despedir do Sertão e ir morar em algum grande centro urbano, desenvolvido. Cuiabá ainda tinha seus arraiais cheios de vida sertaneja: Guia, Freitas, Aguaçú, Coxipó do Ouro... Ainda havia muitas casas-chãs: plenas da atmosfera que lhes davam os quintais e bichos e a alegria de Mães-matriarcas, a ajuntar com comida e reza e festa, os filhos e noras e genros e netos e sobrinhos e amigos; havia o tempo e espaço de terreiros para as cantorias e fala própria, quase dialeto, combinando com a tez negra, morena, indígena. A vida era outra, antes da miscigenação sem par, que redefiniu para sempre os matizes das nossas paisagens naturais e sociais...
Do Araguaia, ninguém vinha estudar em Cuiabá: ia pra Brasília, Goiânia, São Paulo. Vim porque um generoso casal de amigos dos meus pais, vendo nossas dificuldades para seguir com os estudos, ofereceu sua casa para eu ficar; onde morei um ano. Naquele tempo, um interiorano que quisesse estudar comia o pão que o Coisa Ruim amassou com o rabo. Os avanços educacionais, que as muitas lutas dos trabalhadores conquistaram e fizeram instituir, nem de longe se imaginava; eram poucos os filhos dos trabalhadores, que conseguiam entrar na universidade.
Os que vinham do interior precisavam do fundamental: lugar pra morar e comida; se conseguisse um emprego de Salário Mínimo, conseguia pagar uma vaga numa República – mas, a comida, era complicado. A situação era tão difícil, que o Governo Estadual criou um restaurante para atender os “estudantes carentes”, que vinham estudar em Cuiabá: era o REMAP – Restaurante Estudantil Maria Aparecida Pedrossian. O problema é que havia mais boca de estudante faminto, que vaga para atendê-los; ainda assim, inscrevi-me, reivindicando uma vaga, e fiquei esperando sem nunca ter resposta.
Depois de um ano, precisava procurar um lugar pra morar e comida; mas, o salário do primeiro emprego de auxiliar de escritório, não dava pra pagar um quarto na República e a alimentação: a vaga no REMAP era imprescindível, para continuar os estudos em Cuiabá. Então, Jesuíno Carlos Costa, o dono da casa em que morava, disse-me, orientando: “Rapaz, porque você não manda uma carta pro Presidente Figueiredo, dizendo da sua situação? Esse povo do Estado não vai resolver nada, nunca...”
Jesuíno deu-me essa orientação, porque sabia que eu tinha participado, a convite do Governo Federal, da Posse do Figueiredo, que foi o último representante da Ditadura Miliar na Presidência da República, em março de 1979. Sem nada a perder, fiz a carta. Letra bem desenhada, letra de “máquina de escrever”, aprendida com a Professora do Ginásio, Lourdes Alovisi. Disse na carta ao General-Presidente, que tinha vindo estudar em Cuiabá, mas, que, sem as condições básicas necessárias, especialmente a alimentação, via-me na iminência de desistir, etc. e tal. Despachei no correio, que ficava ali na Praça da República, e fiquei esperando, sem muita esperança. Passaram-se meses, e até já tinha esquecido da carta; quando, num certo dia, chegou um telegrama da Presidência da República: era a resposta à minha carta!
O telegrama informava que a Secretaria Estadual de Educação tinha sido notificada, e que, orientada para resolver a minha situação, era para eu ir lá; fui à Secretaria cheio de timidez interiorana, embora me sentindo com a deferência de ter sido mandado pela Presidência da República. Na recepção, mostrei o telegrama para uma mulher, que leu e me olhou com cara de quem me esperava, pedindo-me para acompanha-la. Caminhei por um corredor com cheiro de mofo de casa antiga; em frente a uma porta alta paramos, pediu-me que aguardasse e entrou, fechando a porta atrás de si. Fiquei esperando...
– Rapaz, era necessário você incomodar o Presidente da República, com isso? Cumprimentou-me assim, o chefe da mulher. Ri sem graça. Aquele sujeito sabia a resposta à sua ríspida pergunta: eu só estava ali, por força da carta! A depender dele e da Secretaria, ficaria aguardando resposta à minha inscrição no REMAP num prazo sem fim. O certo é que saí dali comensal do REMAP; com a carteirinha que me garantiu a comida de 1981 até o final de 1982, quando conclui o Segundo Grau e mudei de restaurante: passei a comer no RU da UFMT.
A memória do que foi e significou o REMAP, precisa ser resgatada, contada, num trabalho de maior fôlego. Disse-me a companheira Diana, que lá pelos fins da década de 1960, um pequeno grupo desses estudantes, premidos pela fome, foi até a casa do Governador Pedro Pedrossian reivindicar condições para estudar em Cuiabá; dentre as quais, que o Governo criasse um Restaurante para atender aos “estudantes carentes”. Mas, a reivindicação dos estudantes não se deu apenas com palavras: foi ilustrada com a demonstração fática da condição de vida daquelas criaturas. Quando o grupo estava a relatar ao Governador e à sua esposa Dona Maria Aparecida Pedrossian, as péssimas condições de vida estudantil, com a fome como companheira diária, um dos estudantes caiu duro no chão, desmaiado...
Foi um “Deus nos acuda!” “–É de fome!” Gritaram os demais, assustando o Governador e a Primeira Dama, deveras impactada com aquela cena. Teatralizado ou não, aquele desmaio fez nascer o REMAP: o então famélico estudante, Oswaldo Roberto Sobrinho, protagonizava ali, um ato político de singular importância e repercussão para a elevação da escolaridade de muitos filhos de trabalhadores no estado. Depois, Oswaldo Sobrinho virou professor, foi secretário de estado, deputado e vice-governador. Sem o REMAP, talvez, ele mesmo tivesse voltado pra roça!
A Ditadura Militar teve fim em meados dos anos de 1980, Figueiredo morreu no final de 1999 – morreu de morte morrida. Mais de quatro décadas se passaram. Cuiabá e Mato Grosso estão muito mudados; o mundo mudou. O velho discurso sobre a ameaça comunista, que justificou o Golpe de 64 e a respectiva Ditadura, ainda vige; mas, impactado pelo que se tornou a China Comunista, com seus avanços científicos, tecnológicos e econômicos, infinitamente superiores a qualquer país capitalista, inclusive os USA. É agora, o principal parceiro comercial do Brasil e de muitos outros países; em 2021, declarou ao mundo ter elevado 850 milhões de chineses (mais que o triplo da população brasileira), da situação de pobreza, para a condição de classe média: é a maior ascensão social da história da humanidade...
No ano passado, as estatísticas norte-americanas davam conta de que os USA tinham uma população vivendo sem moradia, nas ruas, da ordem de, aproximadamente, 800 mil pessoas. O império norte-americano parece viver seus estertores. As lutas dos Trabalhadores, tidas como ameaçadoras em 1964, garantiram aos estudantes brasileiros, além da comida, as condições básicas para estudarem – embora, verifica-se índices muito baixos de aprendizagens na Escola Pública Estadual. O Presidente da República, um ícone dessas lutas, longe de ameaçar a democracia, confirma-se por seus atos e procedimentos, como um dos seus defensores mais fervorosos. A ameaça comunista se efetivou, e o Comunismo está vencendo?
O certo mesmo, é que a história segue o seu curso: belíssimo e horroroso!
*Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino
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Anelena Teixeira 06/01/2025
Belo relato professor ! Digno de um livro .
1 comentários