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Opinião Domingo, 05 de Janeiro de 2025, 08:17 - A | A

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Elismar Bezerra Arruda

Uma carta para um ditador, por comida

Elismar Bezerra Arruda

Foi em janeiro de 1981, que vim morar em Cuiabá. Vim estudar. Naquele tempo eram poucos os municípios que ofereciam o Segundo Grau; então, para estudar além do primário era necessário se despedir do Sertão e ir morar em algum grande centro urbano, desenvolvido. Cuiabá ainda tinha seus arraiais cheios de vida sertaneja: Guia, Freitas, Aguaçú, Coxipó do Ouro... Ainda havia muitas casas-chãs: plenas da atmosfera que lhes davam os quintais e bichos e a alegria de Mães-matriarcas, a ajuntar com comida e reza e festa, os filhos e noras e genros e netos e sobrinhos e amigos; havia o tempo e espaço de terreiros para as cantorias e fala própria, quase dialeto, combinando com a tez negra, morena, indígena. A vida era outra, antes da miscigenação sem par, que redefiniu para sempre os matizes das nossas paisagens naturais e sociais...

Do Araguaia, ninguém vinha estudar em Cuiabá: ia pra Brasília, Goiânia, São Paulo. Vim porque um generoso casal de amigos dos meus pais, vendo nossas dificuldades para seguir com os estudos, ofereceu sua casa para eu ficar; onde morei um ano. Naquele tempo, um interiorano que quisesse estudar comia o pão que o Coisa Ruim amassou com o rabo. Os avanços educacionais, que as muitas lutas dos trabalhadores conquistaram e fizeram instituir, nem de longe se imaginava; eram poucos os filhos dos trabalhadores, que conseguiam entrar na universidade.

Os que vinham do interior precisavam do fundamental: lugar pra morar e comida; se conseguisse um emprego de Salário Mínimo, conseguia pagar uma vaga numa República – mas, a comida, era complicado. A situação era tão difícil, que o Governo Estadual criou um restaurante para atender os “estudantes carentes”, que vinham estudar em Cuiabá: era o REMAP – Restaurante Estudantil Maria Aparecida Pedrossian. O problema é que havia mais boca de estudante faminto, que vaga para atendê-los; ainda assim, inscrevi-me, reivindicando uma vaga, e fiquei esperando sem nunca ter resposta.

Depois de um ano, precisava procurar um lugar pra morar e comida; mas, o salário do primeiro emprego de auxiliar de escritório, não dava pra pagar um quarto na República e a alimentação: a vaga no REMAP era imprescindível, para continuar os estudos em Cuiabá. Então, Jesuíno Carlos Costa, o dono da casa em que morava, disse-me, orientando: “Rapaz, porque você não manda uma carta pro Presidente Figueiredo, dizendo da sua situação? Esse povo do Estado não vai resolver nada, nunca...”

Jesuíno deu-me essa orientação, porque sabia que eu tinha participado, a convite do Governo Federal, da Posse do Figueiredo, que foi o último representante da Ditadura Miliar na Presidência da República, em março de 1979. Sem nada a perder, fiz a carta. Letra bem desenhada, letra de “máquina de escrever”, aprendida com a Professora do Ginásio, Lourdes Alovisi. Disse na carta ao General-Presidente, que tinha vindo estudar em Cuiabá, mas, que, sem as condições básicas necessárias, especialmente a alimentação, via-me na iminência de desistir, etc. e tal. Despachei no correio, que ficava ali na Praça da República, e fiquei esperando, sem muita esperança. Passaram-se meses, e até já tinha esquecido da carta; quando, num certo dia, chegou um telegrama da Presidência da República: era a resposta à minha carta!

O telegrama informava que a Secretaria Estadual de Educação tinha sido notificada, e que, orientada para resolver a minha situação, era para eu ir lá; fui à Secretaria cheio de timidez interiorana, embora me sentindo com a deferência de ter sido mandado pela Presidência da República. Na recepção, mostrei o telegrama para uma mulher, que leu e me olhou com cara de quem me esperava, pedindo-me para acompanha-la. Caminhei por um corredor com cheiro de mofo de casa antiga; em frente a uma porta alta paramos, pediu-me que aguardasse e entrou, fechando a porta atrás de si. Fiquei esperando...

– Rapaz, era necessário você incomodar o Presidente da República, com isso? Cumprimentou-me assim, o chefe da mulher. Ri sem graça. Aquele sujeito sabia a resposta à sua ríspida pergunta: eu só estava ali, por força da carta! A depender dele e da Secretaria, ficaria aguardando resposta à minha inscrição no REMAP num prazo sem fim. O certo é que saí dali comensal do REMAP; com a carteirinha que me garantiu a comida de 1981 até o final de 1982, quando conclui o Segundo Grau e mudei de restaurante: passei a comer no RU da UFMT.

A memória do que foi e significou o REMAP, precisa ser resgatada, contada, num trabalho de maior fôlego. Disse-me a companheira Diana, que lá pelos fins da década de 1960, um pequeno grupo desses estudantes, premidos pela fome, foi até a casa do Governador Pedro Pedrossian reivindicar condições para estudar em Cuiabá; dentre as quais, que o Governo criasse um Restaurante para atender aos “estudantes carentes”. Mas, a reivindicação dos estudantes não se deu apenas com palavras: foi ilustrada com a demonstração fática da condição de vida daquelas criaturas. Quando o grupo estava a relatar ao Governador e à sua esposa Dona Maria Aparecida Pedrossian, as péssimas condições de vida estudantil, com a fome como companheira diária, um dos estudantes caiu duro no chão, desmaiado...

Foi um “Deus nos acuda!” “–É de fome!” Gritaram os demais, assustando o Governador e a Primeira Dama, deveras impactada com aquela cena. Teatralizado ou não, aquele desmaio fez nascer o REMAP: o então famélico estudante, Oswaldo Roberto Sobrinho, protagonizava ali, um ato político de singular importância e repercussão para a elevação da escolaridade de muitos filhos de trabalhadores no estado. Depois, Oswaldo Sobrinho virou professor, foi secretário de estado, deputado e vice-governador. Sem o REMAP, talvez, ele mesmo tivesse voltado pra roça!

A Ditadura Militar teve fim em meados dos anos de 1980, Figueiredo morreu no final de 1999 – morreu de morte morrida. Mais de quatro décadas se passaram. Cuiabá e Mato Grosso estão muito mudados; o mundo mudou. O velho discurso sobre a ameaça comunista, que justificou o Golpe de 64 e a respectiva Ditadura, ainda vige; mas, impactado pelo que se tornou a China Comunista, com seus avanços científicos, tecnológicos e econômicos, infinitamente superiores a qualquer país capitalista, inclusive os USA. É agora, o principal parceiro comercial do Brasil e de muitos outros países; em 2021, declarou ao mundo ter elevado 850 milhões de chineses (mais que o triplo da população brasileira), da situação de pobreza, para a condição de classe média: é a maior ascensão social da história da humanidade...

No ano passado, as estatísticas norte-americanas davam conta de que os USA tinham uma população vivendo sem moradia, nas ruas, da ordem de, aproximadamente, 800 mil pessoas. O império norte-americano parece viver seus estertores. As lutas dos Trabalhadores, tidas como ameaçadoras em 1964, garantiram aos estudantes brasileiros, além da comida, as condições básicas para estudarem – embora, verifica-se índices muito baixos de aprendizagens na Escola Pública Estadual. O Presidente da República, um ícone dessas lutas, longe de ameaçar a democracia, confirma-se por seus atos e procedimentos, como um dos seus defensores mais fervorosos. A ameaça comunista se efetivou, e o Comunismo está vencendo?

O certo mesmo, é que a história segue o seu curso: belíssimo e horroroso!

*Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino

 

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Anelena Teixeira 06/01/2025

Belo relato professor ! Digno de um livro .

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1 comentários